quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Considerações sobre a leitura


A leitura dos textos disponibilizados por Andrea, pedagoga da rede Enredando Leituras, trouxe diversas reflexões a respeito do nosso papel enquanto responsáveis pela difusão do livro e da leitura. Ao mesmo tempo me encorajou a tomar atitudes que já vinham me inquietando a algum tempo. Mas vamos aos textos. Depois compartilho estas inquietações.

Em “Bibliotecas como fator de desenvolvimento”,  Fontelles chama atenção imediata para o quão é antiga a nossa primeira biblioteca pública. Data do século XIX, caracterizando-se como uma das metas do programa de emancipação do nosso país. Fiquei a refletir como tivemos tanto avanço em relação à estrutura física, arquitetônica e como pouco avançamos em relação à estrutura simbólica, cultural. Isto constata o quanto o conhecimento e o domínio da leitura e escrita são utilizados como instrumentos de poder, segregação e consequente alienação.

Num país onde de quatro pessoas apenas uma ler, se falar de difusão do livro e da leitura é mais que uma meta pedagógica ou política; é uma necessidade de humanizar o ser humano; de garantir a qualidade humana de pensar, fruir e criar em diversa nuances e dimensões. Vivemos ainda numa sociedade meritocrática, onde não ler implica em aceitação, pobreza, subemprego, conformismo e ostracismo. Ler implica em status, desalienação, consciência crítica, reflexão, inclusão, e transformação. Atentemos para a carga semântica de cada uma destas palavras em destaque, para o que elas representam de fato na vida de cada brasileiro. Ainda que o leitor consciente não queira atingir determinado status, tenha preferido viver com simplicidade, por ter outros ideais que se sobreponham aos financeiros, este leitor teve o direito de escolha. Ainda que leitura não signifique a garantia de ascensão financeira, garante o direito de compreensão da realidade, de escolha.

Eis uma palavra que está implícita neste contexto: escolher. O brasileiro e a brasileira estão, estamos acostumados a viver de maneira fatalista, como se a nossa existência fosse consequência inexorável da natureza e da sociedade. Ainda é muito comum ouvir frases, como “Fazer o que? Foi Deus quem quis assim”; “A sociedade não tem mais jeito”; “É culpa destes políticos corruptos”; “Vai ser sempre assim: os fortes sempre vão vencer e os mais fracos vão ser excluídos”; “Eu não aprendi a vida toda, não vou aprender agora”.

Estas frases que estão no domínio do senso comum reproduzem concepções que datam a Idade Média, quando se pensava na fatalidade da vida e nos mistérios da existência. Mas o Renascimento trouxe o Ser Humano, o colocou no centro das atenções e valorizou a sua estética, a sua capacidade de pensar, de criar e consequentemente, a sua vaidade e capacidade de excluir.

Ler sempre foi um privilégio de poucos. Só os aristocratas e sacerdotes, os pensadores e cientistas; depois os pesquisadores e professores poderiam ler. Aos pobres, camponeses, plebeus e plebeias não era dado esse direito. No entanto, com o caminhar dos séculos, descobre-se que a leitura também pode ser uma ferramenta de dominação. Então, ensina-se a ler para que todos possam ter acesso aos livros sagrados, aos manuais e às regras; para que aceitem e aprendam a viver de acordo com as ideias dos grupos dominantes.

Mas o ser humano é este ser único, que transgride e refaz a sociedade. Assim, figuras como Paulo Freire trazem a prática da democratização da leitura, assumindo-a como um ato político que conduz os leitores de mundo à descoberta do direito à escolha; do direito a ter direitos.

Já se passou uma década do novo milênio e as mudanças ainda são tímidas. Continuamos vivendo num país de iletrados. O acesso à educação de qualidade continua sendo um privilégio de poucos. Com a campanha nacional de democratização do livro e da leitura, centenas de escolas públicas e particulares criaram uma biblioteca ou uma sala de leitura. No entanto, a maioria delas permanece a maior parte do tempo fechada, exercendo a função de depósito de livros. 

Poucas escolas, tomando como referência o contexto nacional, evidenciam uma biblioteca que funcione de acordo com a Lei 12244[1]. Que tenha um planejamento pedagógico, uma prática de mediação e uma atuação junto à comunidade do seu entorno. Mas convém ressaltar que estas poucas bibliotecas, com a ajuda principalmente da comunidade e da iniciativa privada, fazem a diferença. São relatos de experiência, registros que se sobressaem, ganhando projeção em meio à sociedade. Haja vista as experiências citadas no texto “Os segredos das melhores bibliotecas”[2]. Dentre elas, podemos citar o Ônibus Bibliioteca, o Jegue-livro, Biblioteca Volante, dentre outros.

Ressalto aqui, as iniciativas da Rede Emredando Leituras, da qual a Biblioteca de Ítalo faz parte. Cada Biblioteca desta rede faz um trabalho primoroso de atendimento à comunidade periférica de Salvador. O cuidado com a prática do livro e da leitura, com cada criança, jovem e adulto que vem à biblioteca fica evidente no desempenho de cada uma das pessoas que compõem esta rede de fios infinitos, parafraseando Heloísa Prieto:

Todo contato humano se dá por meio de uma leitura, em seu sentido mais amplo: lêem-se as histórias que possuem aquela criança, as histórias que ela deseja possuir, as histórias que tocam as da criança e se esse momento for tratado com cuidado e carinho, nascerá toda uma nova família de histórias, uma rede delicada cuja beleza poderá gerar fios que se entrelaçam infinitivamente.

As mediações de leitura realizadas em cada biblioteca despontam de diferentes lugares e pessoas, e se agregam, se entrelaçam a cada encontro da Rede. Assim, o leitor imersivo, aquele que lê e recria a própria leitura, influenciando na escrita do autor, e porque não dizer do mediar, transborda as suas histórias, se espraia nas areias da ficção, e transforma a realidade. O papel da leitura é assim, ainda que se pondere, teorize ou conjecture, imensurável, porque é subjetivo, único e transcende espaço e tempo.

A razão da biblioteca na vida de uma comunidade se confunde assim, com a razão do livro na vida de uma pessoa. E a mediadora, o mediador são como pontes, como meios por onde cada pessoa transita para atingir o seu alimento e saciar a sua fome da palavra. Precisamos de ter mais fome!!!

O ser humano é o único animal que cria. E a linguagem é a força projetiva, o cerne e o veículo dessa criação. É por meio da palavra, seja ela escrita, contada ou cantada, que o pensamento se propaga, se refaz, cria forma, imagem, cor e sentimento. É ouvindo as histórias que a criança e adolescente se conectam com o seu universo de possibilidades, e estreitam laços, sentem-se acolhidos e amados.

Além desta capacidade de recriar-se e recriar o meio, a partir do contato com a leitura, há a fruição. A esse respeito, Delmanto[3] questiona:

Chamamos prazer ao ato de ler sem nenhuma imposição? Prazer é algo que causa dor ou aborrecimento? É sinônimo de preenchimento do tempo livre? É algo desvinculado da necessidade, do esforço? Trabalho e prazer se opõem de maneira excludente?

Estes questionamentos nos conduzem a uma reflexão mais cuidadosa sobre a questão da fruição e sobre a leitura como o trabalho, um labor, um exercício constante. A tendência que temos a dicotomizar tudo que há, nos conduz também a dicotomizar a leitura e suas finalidades. Ler por prazer ou ler para aprender; ler para passar o tempo ou para trabalhar. Desta forma tendemos a simplificar demais as possibilidades de leitura, suas causas e efeitos.

Verificamos que quanto mais mergulhamos neste universo, mais possibilidades tempos de conseguir solucionar questões internas e externas através da leitura. Estas possibilidades conduzem ao estado de fruição,seja qual for a finalidade primeira da leitura, seja qual for o seu objeto.

Dessa forma, a leitura permite dialogar com o autor, com o contexto, consigo mesmo, de maneira que as diversas sensações e sentimentos brotem, à medida que palavras e imagens desfilam na retina ou nos dedos de cada um.

É preciso, portanto, criar condições para que as pessoas leiam, desejem ler e tenham a garantia de que o seu direito á leitura será respeitado; de que cada um não será prejulgado por escolher ler ou não ler, de que cada um em bem maior que um livro e cada livro pode ser bem maior do que muitas imagens.



[1] LEI Nº 12.244, DE 24 DE MAIO DE 2010
Dispõe sobre a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do País. Disponível em: http://www.cfb.org.br/UserFiles/File/Legislacao/Lei%2012244.pdf
[2][2] Disponível em: http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/melhores-bibliotecas-485917.shtml Consulta realizada em 26/04/2011
[3] A mediação da leitura à luz da concepção de aprendizado socialmente elaborado

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